Especialistas argumentam que Reforma Administrativa deve ser aprovada antes da entrada desses agentes, já que as regras só vão valer para novos funcionários
Por Bernardo Lima
O governo Luiz Inácio Lula da Silva prevê contratar um total de 22,8 mil servidores da administração federal, no acumulado de sua gestão, até 2026. O número equivale a mais do que o dobro dos 10 mil provimentos registrados na administração anterior, de Jair Bolsonaro. Ainda são esperadas para esse período outras 24 mil contratações temporárias (que têm menos direitos e menor custo), a maior parte de recenseadores do IBGE. Especialistas argumentam que a Reforma Administrativa deve ser aprovada antes do ingresso desses servidores, já que as regras só vão valer para novos funcionários.
Até este ano, foram 19,1 mil provimentos autorizados. Para 2026, a estimativa é preencher 3.652 vagas, sendo 3.144 para nível superior e 508 para nível intermediário. Serão 2.480 vagas imediatas e 1.172 para entrada no curto prazo após a homologação dos resultados.
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) afirma que o aumento das contratações desde 2023 é um processo de recomposição da máquina pública, diante de um grande número de aposentadorias após a Reforma da Previdência de 2019 — foram 38,5 mil servidores. Na gestão de Jair Bolsonaro ainda houve o congelamento dos concursos públicos, com a primeira autorização do certame apenas em 2021.
Modernização da gestão
Para a professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) Alketa Peci, é necessário haver uma atualização nas regras do funcionalismo, para que os novos servidores estejam alinhados à modernização da gestão pública.
— Eu entendo a demanda de contratação. Essa é uma demanda real. Você precisa realmente redimensionar a força de trabalho, uma vez que tem saídas e vários anos sem contratação. Mas você precisa contratar a partir de novas premissas, com melhor mobilidade e reposicionamento da força de trabalho — afirma Peci.
O governo sustenta que, mesmo com o aumento das contratações, haverá uma saída líquida de servidores. A estimativa é que a gestão Lula pode terminar o mandato com um “déficit” de até 47 mil funcionários públicos federais entre 2023 e 2026. Segundo dados da pasta, o Executivo deve criar até 22 mil vagas ao fim da gestão, enquanto projeta a aposentadoria de até 69 mil servidores no período.
De acordo com o MGI, 12 mil servidores se aposentaram da administração pública federal em 2023, no primeiro ano do governo Lula. Enquanto isso, a pasta indica que aproximadamente 57 mil servidores do Executivo federal podem se aposentar entre 2024 e 2026.
O secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso Jr., ressalta que o déficit de servidores é ainda maior se considerado o horizonte passado:
— Vai haver uma saída expressiva no horizonte do curto prazo. Se você soma isso aos quase 70 mil servidores que já se aposentaram e já saíram efetivamente no período anterior, de 2016 até o final de 2022, você tem aí mais de 200 mil servidores que podem sair num intervalo muito curto de tempo. E a gente conseguiu repor, em termos efetivos, apenas 22 mil.
No horizonte mais longo, o MGI calcula que 456.410 servidores poderão se aposentar entre 2024 e 2074. A presidente do Conselho da ONG República.org, Renata Vilhena, diz que a necessidade de reposição de servidores nos próximos anos é uma boa oportunidade para avançar com medidas de modernização do serviço público, centradas em três eixos: maior regularidade de concursos, transformação das carreiras e aprimoramento do dimensionamento da força de trabalho.
— A reposição é necessária, mas precisa olhar para o quantitativo de fato, para cada uma das áreas, para o perfil desses novos servidores e para um modelo de carreira que seja mais moderno, porque cada um que entrar agora fica 60 anos na folha de pagamento. Não dá para repetir práticas que já vêm sendo adotadas há décadas — afirma Vilhena.
O grande número de servidores federais saindo do serviço público aquece o debate em torno de uma Reforma Administrativa, que tramita no Congresso Nacional sob relatoria do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).
A reforma, no entanto, não está na lista de projetos que devem ser votados ainda neste ano e é criticada por integrantes do governo.
Pedro Paulo diz que existem opiniões divididas na Esplanada dos Ministérios. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já elogiou partes do texto, como a limitação dos supersalários e regras de desempenho.
— Eu acho que falta ao governo uma decisão ali do núcleo central, principalmente do presidente Lula, se vão tentar obstruir o texto, ou tentar agregar à proposta. A partir daí é fácil, eu sento no dia seguinte com a Esther (Dweck, ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos), eu sei quais são os pontos que incomodam a Esther — afirma o deputado federal.
Revisão anual de gastos
A reforma estabelece medidas como uma tabela única de remuneração para todos os entes da Federação, a criação de metas obrigatórias de desempenho para servidores, o fim de privilégios como férias acima de 30 dias e licença-prêmio, além de limitar a 10% os auxílios de alimentação, saúde e transporte para quem recebe acima de 90% do teto constitucional.
Também prevê a revisão anual dos gastos do Executivo e o fim da aposentadoria compulsória para juízes como punição, além de constitucionalizar a inclusão digital como direito social e criar uma estratégia nacional de governo digital.
O secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso Jr., por sua vez, argumenta que a proposta é muito ampla:
— Veio uma proposta muito abrangente. É uma hiperconstitucionalização de temas de gestão. Vários temas que estão ali, embora eles sejam meritórios, não precisam estar na Constituição, são temas de gestão cotidiana.
Para a professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) Alketa Peci, é essencial que o serviço público avance com uma proposta que estabeleça uma avaliação de desempenho mais estruturada e a limitação de penduricalhos e supersalários.
— A discussão está crescendo, e um dia vai se impor. Isso pode acontecer da forma mais perigosa possível, com respostas mais radicais, como aconteceu no governo anterior e está acontecendo agora no governo (Donald) Trump. Eu acho que hoje estamos em um bom momento para avançar nisso e resgatar alguma nacionalidade administrativa, sem correr riscos — afirma a especialista.
‘Salto qualitativo’
Na avaliação do professor de Administração Pública da Unicamp Oswaldo Gonçalves Junior, a “disputa de narrativas” sobre o papel do Estado nos últimos anos tem interditado o debate sobre uma reforma administrativa.
— Que caminhos existem para fortalecer carreiras estratégicas e, ao mesmo tempo, permitir arranjos mais flexíveis? Penso que essas preocupações qualitativas, para além das quantidades que envolvem o montante de reposições, sem dúvida necessário, são o outro lado da moeda e permitiriam dar um salto qualitativo na administração pública — argumenta o professor.
Desde a campanha, o governo Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a postura de valorização dos servidores públicos diante do congelamento de salários na gestão Jair Bolsonaro. O presidente Lula deve enviar nos próximos dias ao Congresso Nacional um projeto de lei que prevê a reestruturação de carreiras federais. As mudanças atingem 200 mil servidores, entre ativos e aposentados, e terão impacto anual estimado de R$ 4,2 bilhões.
O texto cria 8,6 mil cargos efetivos para universidades federais e 225 para Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), funções que serão preenchidas após concursos públicos. O projeto prevê ainda a criação de uma nova carreira de analista técnico no Executivo, que poderá atuar em diferentes ministérios substituindo funções que atualmente são ocupadas por arquivistas, bibliotecários, contadores, entre outros.