STF valida medidas extrajudiciais do Marco Legal das Garantias por dívidas não pagas
Por Mateus Mello / José Higídio
O Plenário do Supremo Tribunal Federal validou os procedimentos extrajudiciais previstos no Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/2023) para a perda da posse e da propriedade de bens em casos de dívidas contratuais não quitadas, mas ressaltou que as medidas para localização e apreensão de bens dados em garantia em alienação fiduciária devem respeitar direitos fundamentais e outros princípios constitucionais. O julgamento virtual terminou nesta segunda-feira (30/6).
Maioria dos ministros acompanhou Dias Toffoli, relator do caso
A União dos Oficiais de Justiça do Brasil (UniOficiais-Br), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação Nacional dos Oficiais de Justiça Avaliadores Federais (Fenassojaf) questionaram, em 2024, os trechos da lei que criaram os mecanismos extrajudiciais. São eles: consolidação da propriedade em alienação fiduciária de bens móveis, busca e apreensão extrajudicial, execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca e execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores.
A alienação fiduciária é uma modalidade de financiamento e uma das principais formas de aquisição de veículos no Brasil. Nesse modelo, o comprador transfere a propriedade do bem para uma instituição financeira (credora) como forma de garantia do pagamento da dívida relativa ao financiamento.
O chamado devedor fiduciante não é titular do bem enquanto não quitar o financiamento. Caso isso não aconteça dentro do prazo estipulado, o credor fiduciário pode solicitar ao Judiciário a busca e apreensão do veículo.
Para as entidades, o confisco de bens sem a análise prévia do Judiciário viola os direitos à dignidade da pessoa humana, à propriedade e à intimidade e à vida privada. Além disso, desrespeitaria os princípios do devido processo legal, da ampla defesa, da reserva de jurisdição e o direito de ser processado pela autoridade competente.
Voto do relator
O ministro Dias Toffoli, relator do caso, foi quem propôs a tese vencedora. Ele foi acompanhado na íntegra pelos ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, André Mendonça, Luiz Edson Fachin, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Kassio Nunes Marques e Luís Roberto Barroso.
O relator não encontrou problemas em três dos quatro mecanismos criados pela lei de 2023: consolidação da propriedade em alienação fiduciária de bens móveis, execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca e execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores. No entanto, reconheceu a necessidade de adequação do texto no que diz respeito às diligências de busca e apreensão extrajudicial.
Em relação a essas últimas, Toffoli sugeriu uma interpretação para garantir os direitos reivindicados pelos autores. Segundo ele, “devem ser assegurados os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor; a inviolabilidade do sigilo de dados; a vedação ao uso privado da violência; a inviolabilidade do domicílio; a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade”.
O magistrado observou que os trechos questionados substituíram o artigo 29 do Decreto-Lei 70/1966, aproximando as regras do conteúdo da Lei 9.514/1997, ambas validadas pela jurisprudência do STF. “Tais normas não obstam o acesso ao Poder Judiciário, bem como franqueiam ao devedor a possibilidade de se manifestar, inclusive purgando a mora, antes da consolidação da propriedade em nome do credor”, escreveu.
Para ele, as execuções extrajudiciais acompanham uma tendência global que busca desafogar os Judiciários para acelerar os trâmites processuais sem afetar a qualidade dos julgamentos. Citando Fux, ressaltou que a Justiça continuará disponível para resolver eventuais controvérsias ou ilegalidades.
Divergências
Flávio Dino discordou de apenas um ponto do voto de Toffoli. Ele votou contra a permissão para que contratos de alienação fiduciária sejam executados perante os departamentos estaduais de trânsito, já que os órgãos não são fiscalizados ou regulamentados diretamente pelo Judiciário, mas ficou vencido.
Já Cármen Lúcia divergiu completamente do relator e invalidou todos os trechos contestados, mas também não recebeu apoio de nenhum outro ministro.
Para a magistrada, qualquer norma infraconstitucional que estabeleça procedimentos extrajudiciais de execução de crédito com busca e apreensão contraria o princípio da propriedade privada e a garantia à inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
Ela citou, ainda, o inciso LIV do artigo 5º da Constituição, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Cármen lembrou do julgamento da ADI 1.668, quando o STF considerou inconstitucional um trecho da Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997) que permitia buscas e apreensões pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sem autorização judicial.
A ministra ainda recordou que o STF foi contrário a trechos da Lei 10.522/2002 que autorizavam a Fazenda a tornar indisponíveis os bens de devedores inscritos em dívida ativa durante a fase pré-executória.
“As normas impugnadas, ao permitirem a busca, apreensão e alienação de bens de propriedade ou sob posse direta do devedor, por procedimento que tramita em serventia extrajudicial, sem submeter-se ao controle do Poder Judiciário, contrariaram a Constituição da República e, por isso, devem ser declaradas inconstitucionais”, concluiu.