Reforma do Código de Processo Penal ameaça poder de investigação do MP, alertam entidades

Posted On Terça, 18 Mai 2021 15:52
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A intenção do presidente da Câmara é acelerar a análise do texto

 

Por Caio Sartori

 

O projeto de reforma do Código de Processo Penal (CPP), em discussão na Câmara dos Deputados, tem provocado críticas de associações do Ministério Público e polêmicas no meio jurídico. Promotores e procuradores alegam que pontos do texto podem reduzir seu poder de investigação. Já representantes dos advogados avaliam que a proposta traz avanços ao regulamentar aspectos hoje em aberto e cobram critérios fixados em lei para decidir quais investigações o MP deve fazer.

O debate no parlamento caminha para sua conclusão. Nesta terça, 18, termina o prazo de 12 sessões para que a comissão especial criada sobre o tema aprove seu relatório final. A partir daí, caberá ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), pautar o projeto em plenário.

 

Um artigo do projeto do novo CPP em especial incomoda as organizações ligadas aos MPs – tanto a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) quanto as entidades estaduais. Ele prevê que os promotores e procuradores só poderão conduzir investigações criminais quando houver “fundado risco de inefica´cia da elucidac¸a~o dos fatos pela poli´cia, em raza~o de abuso do poder econômico ou poli´tico”.

Para as associações, esse trecho é nebuloso, já que, em sua opinião, é difícil avaliar se há ou não interferência nas investigações policiais.

 

“Nossa principal preocupação é a questão da investigação pelo MP porque, do jeito que está previsto, ela fica inviabilizada. O texto é subjetivo. Quem vai dizer se é de ‘fundado risco’, ou não? A situação concreta tem uma linha de subjetividade”, diz o promotor Cláudio Henrique da Cruz Viana, presidente da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Amperj).

 

Livre para investigar

O Supremo Tribunal Federal (STF) já fixou, no julgamento de um recurso, que os MPs podem, sim, conduzir investigações criminais. O relator do texto na Câmara, deputado João Campos (Republicanos-GO), garante que a Casa seguirá o entendimento da Corte. Esse tema chegou a ser votado pelos deputados, em 2013, e a proposta de retirar do MP o poder de investigar foi rejeitada. Os protestos da população à época (as chamadas Jornadas de Junho) ajudaram a pressionar os parlamentares para que a proposta fosse derrubada.

 

“É preciso haver um critério legal para saber quando o MP pode ou não investigar. O que não pode é o MP ficar ao sabor dele. O que sou categoricamente favorável é que as hipóteses estejam definidas em lei, e quem vai decidir isso é o Parlamento”, afirmou o advogado Gustavo Badaró. Ele preside a Comissão de Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e participa das discussões na Câmara. “Não pode ser o próprio MP quem decide se investiga ou não. Quando é investigação de gente famosa, (o MP) vai lá e instaura um procedimento; quando tem um caso menor, não abre. Não há um critério.”

 

A Constituição de 1988 definiu as funções do MP ligadas ao processo penal: controlar a atividade policial, oferecer a denúncia e requisitar diligências investigatórias ou de instauração de inquérito pela polícia. Com o passar do tempo, contudo, promotores e procuradores passaram a tocar as próprias investigações penais, prática que já foi endossada pelo STF. A linha de raciocínio é que, como a atividade-fim do Ministério Público envolve a promoção da ação penal – ou seja, a denúncia –, ele tem direito a exercer outras atividades que levem a ela.

 

Hoje, para dar início a uma investigação, basta que o MP tenha elementos para embasá-la e respeite direitos constitucionais e o devido processo legal, além de outros requisitos técnicos. No caso dos crimes mais ligados à classe política, por exemplo, ela pode começar com dados de órgãos como a Receita Federal, o Banco Central, a Controladoria-Geral e o Tribunal de Contas.

 

As apurações contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) em torno do caso das ‘rachadinhas’, por exemplo, foram iniciadas pelo MP do Rio. Tiveram como ponto de partida um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que identificou movimentações atípicas na conta de Fabrício Queiroz, o suposto operador do esquema.

 

Já no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, as apurações começaram com a Polícia Civil, mas tiveram participação do Ministério Público após suspeitas de que a investigação vinha sofrendo interferências.

 

Juiz de garantias

Outro ponto controverso do relatório preliminar de Campos sobre a reforma é a criação do juiz de garantias. A proposta enfrenta resistências no MP e no Judiciário. Instrutor do processo, esse magistrado seria responsável por acompanhar as investigações, mas não tomaria as decisões que poderiam tornar os acusados réus e condená-los.

 

A figura do juiz de garantias chegou a ser incluída no Pacote Anticrime de 2019. Não foi, porém, implementada, por decisão do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF). A controvérsia já dura cerca de dois anos e cresceu após a revelação de conversas entre o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato. Os contatos indicaram que o magistrado orientava o MP em ações penais, mas a legislação brasileira proíbe os magistrados de orientar as partes.

 

No texto que está na Câmara, o prazo para a implantação do juiz de garantias é de cinco anos, ampliando a previsão original.

 

Advogados veem esse instituto como necessário para evitar que os magistrados, ao tomar decisões condenatórias, sejam influenciados pelo que decidiram na instrução do processo. Com o novo mecanismo, atuariam dois juízes em cada investigação criminal: um para instruí-la, outro para julgá-la.

 

“Depois de tudo que se avançou na psicologia cognitiva, de tudo o que foi demonstrado do que os vieses causam em qualquer ser humano, o MP e a magistratura serem contra o juiz de garantias, negarem que possa ter um viés nos processos, é um absurdo”, alega o representante da OAB.

 

Já os investigadores e alas do Judiciário consideram o juiz de garantias incompatível com a realidade do Brasil. Lembram a dimensão territorial e a ausência de juízes em grotões do País.

 

“Não tem como pensarmos só nas capitais. Na maioria dos locais, há falta de juízes, então você traz uma figura que, sob o ponto de vista prático, é de difícil aplicação”, aponta o presidente da Amperj.

 

Em resposta a esse problema, o relator diz que as discussões do projeto têm buscado adaptar o juiz de garantias à situação brasileira.“Os principais argumentos utilizados na decisão do ministro Fux foram a questão orçamentária e o prazo para implementação”, afirma Campos. “Estamos dando um prazo de cinco anos para adequar o orçamento, ajustar as leis de organização judiciária dos Estados.”

 

Para Badaró, a digitalização dos processos - já em curso – e uma adaptação nas varas tornariam a criação do juiz de garantias algo menos complicado do que parece.

 

Outros pontos provocam embates entre MPs e a advocacia. Entre eles está a possibilidade de haver a chamada investigação defensiva por parte de advogados de defesa, em contraponto às apurações policiais ou de promotores e procuradores. O texto também pode proibir a condenação baseada em indícios e determinar que juízes só aceitem ou não uma denúncia após uma primeira resposta do acusado.

 

MP e advocacia convergem na preocupação com o fim da primeira fase do Tribunal do Júri, na qual o juiz decide se há a necessidade de levar o caso a júri popular. Há outro aspecto de concordância entre promotores, procuradores e advogados. Apesar de a proposta de revisão do CPP estar em pauta no Congresso há mais de dez anos, ambas as partes acreditam que o texto está avançando rápido demais em meio à pandemia, sem uma ampla discussão na sociedade. Na definição de Badaró, a reforma passou por “longos tempos de inação” e, agora, entrou em “hiperaceleração para terminar logo”.

 

Principais controvérsias

 

Pontos que opõem advogados e promotores

 

Criação do juiz de garantias num prazo de cinco anos

Proibição, para o MP, de abrir investigação criminal sem que haja ‘fundado risco de ineficácia da elucidação dos fatos pela polícia

Proibição da condenação com base em ‘indícios’

Permissão para a chamada ‘investigação defensiva’ por parte de advogados

Proibição de aceitação de denúncia pela Justiça sem que o acusado tenha sido ouvido