Por Ricardo Lewandowski

 

Na Roma antiga existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da Alemanha e da Itália.

 

Em 49 a.C., o general romano Júlio César, após derrotar uma encarniçada rebelião de tribos gaulesas chefiadas pelo lendário guerreiro Vercingetórix, ao término de demorada campanha transpôs o referido curso d’água à frente das legiões que comandava, pronunciando a célebre frase: “A sorte está lançada”.

 

A ousadia do gesto pegou seus concidadãos de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político, instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.

 

O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores.

 

No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.

 

O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.

 

No plano externo, o Tratado de Roma, ao qual o Brasil recentemente aderiu e que criou o Tribunal Penal Internacional, tipificou como crime contra a humanidade, submetido à sua jurisdição, o “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil”, mediante a prática de homicídio, tortura, prisão, desaparecimento forçado ou “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.

 

E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a “defesa da lei e da ordem”, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes.

 

A propósito, o Código Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que “se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior”.

 

Esse mesmo entendimento foi incorporado ao direito internacional, a partir dos julgamentos realizados pelo tribunal de Nuremberg, instituído em 1945, para julgar criminosos de guerra. Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão.

 

Por Ricardo Lewandowski, é minisatro do Supremo Tribunal Federal 

 

 

Posted On Segunda, 30 Agosto 2021 05:28 Escrito por

A terceira maior pobreza é que as lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para saber se eles respeitarão as eleições

 

Por Cristovam Buarque

 

 

A maior pobreza da democracia brasileira é não ter adotado uma estratégia para abolir a pobreza da população: não movemos a linha da pobreza nem aterramos o abismo da desigualdade. A segunda é a incerteza: se os portadores de armas aceitarão os resultados das urnas. A terceira maior pobreza é que as lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para saber se eles respeitarão as eleições. Foi o que vimos na semana passada, quando ex-presidentes, ex-ministros e líderes políticos procuraram militares para saber se os generais apoiariam golpe para impedir a derrota eleitoral do atual presidente.

 

Esta consulta demonstra a pobreza da democracia brasileira e das lideranças democráticas. Em uma democracia consolidada não haveria este temor aos militares. Eles estariam fora da política. Como estão em todos os outros países do continente, com exceção da Venezuela e do Brasil. Ao perceberem a fragilidade da democracia, os políticos deveriam unir as forças democráticas para enfrentar o risco de golpe. É a unidade nas urnas que dá força para vencer as armas. No lugar disto, nossos líderes se dividem, se antagonizam e, depois de ouvirem as manifestações legalistas dos generais, voltam tranquilos da conversa e continuam se digladiando entre si, confiantes de que o regime democrático sobreviverá, graças à boa vontade dos militares.

 

Esquecem que o maior incentivo ao golpe é a divisão dos líderes civis ao empurrarem os militares, provocados diante do vazio e da instabilidade que ameaça o País. As lideranças também esquecem o pouco significado da opinião dos comandantes, porque o desrespeito às urnas raramente parte de generais comandantes. Em muitos golpes, os primeiros presos são os generais, por determinação de coronéis, motivados pela divisão, incompetência ou corrupção de civis. Às vezes, o golpe vem de polícias ou milicias armadas ou do povo na rua. Não é raro também os golpes virem de um líder político contra os outros.

 

Quando perguntados se haveria golpe, os generais deveriam ter devolvido a pergunta aos políticos: “vocês acham que há clima para golpe? De onde viria?” Se não fossem enfáticos, ainda poderiam perguntar: “onde vocês erraram e estão errando para esta hipótese ser considerada.

 

A única forma de as urnas vencerem as armas está na unidade dos políticos democráticos. Para isto, devem entender que não é por gosto ou vocação que militares dão golpe e desmancham a democracia. Fazem isto empurrados quando a democracia demonstra esgotamento, quase sempre por incompetência e divisionismo entre políticos civis. Não precisam perguntar aos militares se eles querem intervir. Eles responderão corretamente que não querem e nunca quiseram, nem mesmo em 1964.

 

Foi a divisão entre políticos, o clima de instabilidade, a polarização da guerra fria e um general afoito que deslancharam o golpe. Para evitar golpe, os democratas devem evitar o acirramento da disputa no primeiro turno, cujas disputas e acusações deixam pouca margem para a unidade no segundo. Devem escolher um nome com mais chance de ser eleito e este assumir que seu governo promoverá união de todos para defender o poder das urnas. Mas isto parece impossível, e o outro lado, um presidente isolado, despreparado, com claros sinais de demência, pode provocar a instabilidade que levará a um golpe que os militares não querem fazer, mas os políticos divididos poderão provocar e serem as vítimas depois. Não será a primeira vez na história.

 

Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

 

Posted On Domingo, 29 Agosto 2021 04:58 Escrito por

O STF (Supremo Tribunal Federal) tem recorrido à chamada modulação de efeitos em julgamentos tributários para evitar que decisões gerem prejuízo ao governo

 

POR MATHEUS TEIXEIRA

 

 

A medida, contudo, tem sido criticada por estimular a criação de impostos ilegais e por gerar insegurança jurídica a investidores.

 

Nos últimos anos, em ao menos 11 processos a corte derrubou a cobrança de tributos bilionários, mas afirmou que as decisões só passariam a ter validade do momento em que foram tomadas em diante, sem exigir a devolução ao contribuinte dos impostos pagos com base em lei inconstitucional.

 

Assim, o Supremo abre margem para a criação de impostos que incrementam o caixa do governo mesmo sendo contrários à Constituição, porque depois o Judiciário desobriga o Estado de devolver o valor arrecadado.

 

O fenômeno passou a ser estudado no mundo acadêmico e ganhou o nome de inconstitucionalidade útil, que nada mais é do que a produção de normas sabidamente contrárias às regras na expectativa de, mais tarde, o Supremo anulá-las sem determinar a devolução do que já foi recolhido.

 

A primeira vez que o Supremo discutiu modular os efeitos de uma decisão para que ela só tivesse efeito dali para frente foi em 2007, no debate sobre a alíquota zero do IPI, mas não houve maioria nesse sentido.

 

Antes disso, o entendimento da corte era de que, se o tributo foi declarado ilegal, ele nunca poderia ter entrado em vigor e, portanto, o que foi cobrado com base nele deveria ser devolvido pelo governo.

 

No próximo dia 27, o Supremo irá julgar qual o marco temporal adequado a ser aplicado nas situações em que é necessário modular a decisão.

 

Atualmente, não há uma regra definida e já foram tomadas decisões em quatro sentidos diferentes sobre a partir de quando o resultado do julgamento passa a ter efeito: da publicação da ata da sessão, da publicação do acórdão, da data que iniciou ou da data que encerrou o julgamento.

 

Outro ponto criticado em relação às decisões desta natureza diz respeito ao fato de, em alguns casos, a corte definir que a decisão tomada pelo Supremo em determinado tema só deverá beneficiar contribuintes que já acionaram a Justiça para contestar aquele imposto em questão.

 

Isso aconteceu, por exemplo, na discussão sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Em março de 2017, a corte decidiu retirar o imposto do cálculo para pagamento das duas contribuições.

 

Quatro anos depois, em maio deste ano, a corte se reuniu para analisar o pedido da União para modular os efeitos da decisão a fim de evitar um rombo aos cofres públicos.

 

Os ministros atenderam em parte a solicitação do governo federal e definiram que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins só podia ser aplicada a partir de 2017, quando o Supremo julgou o tema.

 

Além disso, o STF decidiu que, antes desta data, a nova regra só poderia ser aplicada a quem já havia ingressado com ação judicial ou procedimento administrativo contestando a cobrança do imposto.

 

Esse tipo de decisão, na visão de especialistas, amplia a judicialização e vai na contramão de todo o esforço que o STF e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) têm feito para reduzir o volume processual do país, uma vez que beneficia apenas quem já tinha acionado o Judiciário.

 

Outro problema na atuação do tribunal na análise de processos com impacto financeiro que envolvem a legalidade de tributos é o fato de a corte deixar a análise do pedido de modulação de efeitos para o julgamento dos recursos contra a decisão que retirou do ordenamento jurídico determinado imposto.

 

Como tem sido comum a corte deixar para um segundo momento o debate sobre o marco temporal que determina a partir de quando determinada decisão terá validade, tribunais de todo o país têm deixado de aplicar entendimentos fixados pelo Supremo que deveriam ser vinculantes.

 

Isso aconteceu em diversos casos, inclusive no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que em muitas situações deixa de aplicar decisões do Supremo sob o argumento de que prefere aguardar a corte julgar recursos e definir a modulação antes de aplicar o entendimento da cúpula do Judiciário.

 

Fabio Goldshmidt, advogado tributarista que atua perante o STF, afirma que a primeira vez que a corte discutiu, mas negou a possibilidade de modular efeitos foi em 2007, em um processo no qual ele advogava e discutia a alíquota zero para o IPI.

 

Ele fez um levantamento que aponta que, desde então, em ao menos 11 julgamentos a corte decidiu em favor de jogar a decisão para frente.

 

Goldshmidt diz que a possibilidade de modulação de efeitos é "extremamente útil" para se garantir um ambiente de segurança jurídica. O mecanismo foi criado para evitar alterações bruscas no sistema em casos em que há mudança de jurisprudência.

 

No entanto, o advogado diz que é preocupante o fato de o Supremo ter usado a ferramenta cada vez mais.

 

"É como aquele remédio que, na dosagem errada, pode matar o paciente. É um antibiótico que, se eu usar todo dia, quando precisar mesmo dele não fará mais efeito", compara.

 

Goldshmidt diz que o exemplo dado pelo Supremo na área também tem estimulado outros tribunais a agirem de maneira heterodoxa em relação à modulação de efeitos.

 

Recentemente, por exemplo, os Tribunais Regionais Federais da 1ª e da 2ª região decidiram aplicar à discussão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins o que o Supremo decidiu em relação à modulação de efeitos do ICMS nessa temática.

 

"A questão do ISS nunca foi julgada pelo Supremo e não há previsão legal para aplicar nessa situação o que foi decidido em julgamento sobre outro tema", afirma.

 

A doutoranda em direito tributário na USP (Universidade de São Paulo) Raquel Alves critica o fato de o Supremo deixar para um segundo julgamento a discussão sobre a modulação de efeitos.

 

"Nesses casos, o instrumento que deveria ser usado em prol da segurança jurídica acaba gerando o efeito contrário, especialmente em relação às ações judiciais que são ajuizadas após a decisão de mérito e transitam em julgado antes do julgamento dos embargos", diz.

 

Ela afirma que os processos apresentados à Justiça neste interregno entre os dois julgamentos têm levado ao aumento da judicialização e da sobrecarga ao Judiciário.

 

"Vem o STF e modula para determinar os efeitos a partir do julgamento no mérito. O que fazer nesses casos? Vai ter que ajuizar uma ação rescisória. No exemplo do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, a Fazenda está tentando reabrir vários processos no STJ justamente para discutir a modulação que o Supremo definiu quatro anos após se debruçar sobre o mérito", afirma.

 

Em ao menos cinco casos o Supremo decidiu modular os efeitos da decisão no julgamento de recurso. Isso ocorreu, por exemplo, no debate relativo à incidência de ICMS sobre licenciamento de uso de software e na discussão sobre a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS.

 

Questionada, a assessoria do Supremo afirmou que não irá comentar as decisões da corte sobre o tema.

 

Posted On Quinta, 26 Agosto 2021 14:45 Escrito por

Segundo ex-presidente, a culpa da grave crise econômica nacional caberia à Operação Lava Jato – não à própria corrupção. Uma cínica tentativa de criar uma nova narrativa e evitar um mea culpa, escreve Alexander Busch.

 

Por Alexander Busch*

 

Corrupção na Petrobras manchou imagem internacional da estatal e do Brasil© Fabio Teixeira/Zuma/picture alliance Corrupção na Petrobras manchou imagem internacional da estatal e do Brasil
Em 10 de março de 2021 o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva expôs pela primeira vez sua visão particular do escândalo de corrupção da Lava Jato: devido à operação, o Brasil teria perdido cerca de R$ 172 bilhões em investimentos, e 4 milhões de cidadãos teriam ficado sem emprego, queixou-se, lamentando que uma empresa tão imponente como a estatal Petrobras tenha sofrido danos.

 

As sentenças de Lula por lavagem de dinheiro e corrupção acabavam de ser suspensas por motivos formais. Seus adeptos festejaram o fato como uma absolvição, muitos interpretaram essa aparição pública em março como seu primeiro discurso de campanha.

 

Na realidade, o ex-chefe de Estado está incorrendo numa estranha distorção da história. Pois não foram os inquéritos da Justiça no escândalo que causaram danos à economia e à Petrobras, mas sim a corrupção, a má gestão, as decisões econômicas equivocadas nos cerca de 13 anos em que o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula esteve no poder.

 

Jogar para a Justiça a responsabilidade pelos prejuízos é como culpar pela doença o médico que a diagnosticou no paciente.

 

O drama da Petrobras

Lula citou uma análise realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), por encomenda da Central Única dos Trabalhadores (CUT), examinando as consequências econômicas da Operação Lava Jato, entre 2014 e 2017. Nela, os pesquisadores distorcem os fatos, pois o ocaso da Petrobras já havia iniciado muito antes das investigações judiciárias, a partir de março de 2014.

 

O ex-chefe de Estado e sua sucessora, Dilma Rousseff, tencionavam transformar a estatal na locomotiva industrial do Brasil. Mas no processo dividiram a pele da onça antes de ela ter sido caçada, já que os lucros com o petróleo não jorravam tão rápido como se esperava, devido às complexas tecnologias do pré-sal.

 

Em consequência, a Petrobras se endividou ao ponto de, em 2013, se tornar a companhia cotada na bolsa de valores com o maior volume de dívidas do mundo. Ao mesmo tempo, o governo recrutou a multinacional também para o combate à inflação, e a gasolina e o diesel passaram a ser vendidos mais barato.

 

Quando, a partir de 2014, o preço do petróleo começou a cair, investigadores de Curitiba revelaram gradualmente um gigantesco esquema de corrupção, em que firmas de construção privadas, em especial a Odebrecht, haviam desviado bilhões, junto com a gerência da Petrobras e com a bênção do governo e seus parceiros de coalizão.

 

Teorias de conspiração em curso online

No decorrer das investigações, prenderam-se diversos diretores da Petrobras e da indústria de construções, e suas empresas foram excluídas das concorrências públicas. Muitos fornecedores que haviam pagado propina também ficaram proibidos de trabalhar com a Petrobras.

 

Nesse ínterim, o Instituto Lula elaborou as conclusões do Dieese na forma de um curso online, em que especialistas explicam como as investigações da Justiça prejudicaram a classe trabalhadora.

 

A abertura cabe ao ex-chefe da Petrobras Sergio Gabrielli, que reproduz as teorias de conspiração de praxe da esquerda. Segundo estas, o FBI e as Forças Armadas americanas teriam usado como seu capanga o juiz Sergio Moro, "treinado nos Estados Unidos", a fim de enfraquecer a estatal do petróleo. Gabrielli se permite até explicar que os R$ 6 bilhões de subornos, divulgados oficialmente pela primeira vez em 2014, seriam "quase nada" diante do faturamento da Petrobras.

 

Tudo isso é a tentativa cínica de sobrepor uma nova narrativa à Lava Jato – evitando assim o mea culpa necessário a um recomeço político para Lula e seu partido.

 

*Alexander Busch

 

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.

 

 

Posted On Quinta, 19 Agosto 2021 05:36 Escrito por

Por Modesto Carvalhosa

 

Os partidos políticos, em conformidade com o artigo 44, V, do Código Civil, são pessoas jurídicas de Direito Privado. Não têm eles, portanto, status de entidade pública.

 

Os partidos são constituídos e dissolvidos de acordo com as regras de Direito Civil. O fato jurídico de arquivarem seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para a consecução de suas finalidades eleitorais, não altera sua natureza de agremiações de Direito Privado. O artigo 17, parágrafo 2.º, da Constituição de 1988 dispõe que “os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral”.

 

Não obstante, os partidos políticos recebem do Estado brasileiro, mensalmente, recursos do Fundo Partidário, uma fabulosa verba orçamentária de bilhões de reais para construírem suas sedes, cobrir as passagens aéreas e despesas gerais de seus dirigentes, pagar, sem nenhum limite, os advogados que defendem os seus próceres das fraudes eleitorais e dos crimes de corrupção, tudo regulamentado pela infame Lei n.º 13.877, de 2019.

 

E a Constituição federal ainda permite aos nossos “patrióticos” partidos o acesso gratuito ao rádio e à televisão, o que custa ao Estado bilhões em despesas tributárias decorrentes das deduções dos respectivos custos arcados pelas emissoras.

 

Essas enormes apropriações privadas de recursos públicos estão previstas na Constituição de 1988. Mas os retrógrados e corruptos políticos profissionais que dominam o Brasil desde o governo Sarney, liderados pelo famigerado “Centrão”, resolveram aumentar geometricamente esses benefícios particulares, não mais por meio de norma constitucional, mas diretamente, mediante lei ordinária. Assim é que as nossas agremiações políticas, em face da restrição imposta ao uso dos caixas 1, 2 e 3, outrora alimentados pelas empreiteiras, promoveram em 2017 uma lei em causa própria que permite “compensar” essa lamentada perda de recursos criminosos. As empresas foram formalmente impedidas de “financiar” as campanhas eleitorais dos partidos por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), sob o correto fundamento de que pessoa jurídica não é eleitor.

 

Temerosos de não mais continuarem a enriquecer com a grande corrupção que sempre ocorre na época das (re)eleições, a casta política votou unida – situação e “oposição” – a Lei n.º 13.487, de 2017, sancionada sem vetos pelo presidente da República. Trata-se de uma lei inconstitucional, que legaliza a corrupção, ao criar o chamado “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”, com a sigla FEFC. Assim, não podendo mais contar com os bilhões das empreiteiras, as nossas oligarquias políticas resolveram assaltar diretamente o Tesouro Nacional para garantirem a reeleição de seus imutáveis quadros.

 

Ademais, essa infame lei assegura a hegemonia e o monopólio dos grandes partidos, que, do bolo bilionário – elevado a R$ 5,7 bilhões em 2022 – receberão muito mais do que as dezenas de agremiações fisiológicas pequenas e nanicas. Estas devem se contentar com uns poucos milhões, ao passo que, no ano que vem, as duas maiores siglas – PT e PSL – receberão R$ 1,2 bilhão. Em consequência, os pequenos partidos de aluguel terão de compensar a sua inferioridade na grande orgia do dinheiro público vendendo, a preço de ouro, às agremiações hegemônicas os seus segundos e minutos na propaganda eleitoral “gratuita”.

 

Isto posto, é flagrante a inconstitucionalidade da lei infame que instituiu o fundo eleitoral para o grande assalto ao Tesouro em favor dos partidos e de seus eternos candidatos à reeleição.

 

De acordo com o referido artigo 17, parágrafo 3.º, da Constituição federal de 1988, a única fonte de recursos públicos atribuível aos partidos políticos é o Fundo Partidário. Somente uma emenda constitucional poderá alargar o leque de privilégios financeiros para os partidos com recursos públicos. Acontece que o execrável fundo eleitoral foi criado por uma simples lei ordinária, no duplo sentido de termo – jurídico e semântico.

 

Além da inconstitucionalidade formal, decorrente da falta de emenda constitucional, há uma insanável inconstitucionalidade material nesse sumidouro de dinheiro público. Isso porque ele está sendo abastecido por 30% de recursos que devem ser aplicados nas áreas da saúde, da educação, da habitação e do saneamento básico dos Estados e dos municípios, conforme o artigo 23 da Constituição federal de 1988.

 

Esse desvio é absolutamente inconstitucional, pois causa danos irreparáveis e permanentes à coletividade: retira de fundos vinculados aos serviços públicos essenciais recursos para o uso e gozo dos políticos profissionais e de suas agremiações. Por todas essas iniquidades, típicas da corrupção legalizada que impera em nosso país, essa lei que instituiu o fundo eleitoral recebeu a repulsa de 90,7% do povo brasileiro.

 

ADVOGADO. É AUTOR, ENTRE OUTRAS PUBLICAÇÕES, DE ‘UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL’ (2021, EDITORA LVM)

 

Posted On Segunda, 26 Julho 2021 06:39 Escrito por
Página 14 de 26